terça-feira, 11 de abril de 2017

PEQUENA CRÔNICA DE UMA PRAÇA (44)



Ela subiu na única árvore da praça, feito um esquilo assustado. Já viu um? Pá pá pum...o bichinho já sumiu no meio das folhagens, ninguém viu, ninguém vê mais. Mas ela, tadinha, todo mundo via. Entre galhos e folhas, equilibrava-se, com a cara amarrada, a respiração ofegante. Queria ser um esquilo, para pá pá pum também, mas era grande e alta demais para tanto, e passou a ser a atração do momento. Não dava um pio, fechava os olhos quando alguém comentava algo, e olhava para o céu a maior parte do tempo. Fosse ela a única viva alma naquele lugar, seria muito bom. Mas a praça estava era cheia - e pior - virou motivo de risos e piadas. Mas por que ela, daquele tamanho, adulta, dona de si, se transformara num moleque que sobe em árvores em três tempos? Sua presença no alto da árvore já era motivo de curiosidade, mas seus gestos (ou a falta deles) a transformava em um espetáculo. Uns assoviavam, ela olhava pro céu. Outros davam risadas, ela fechava os olhos negros. Algumas crianças tentavam subir também, ela fazia uma cara de mal de filme de terror, de espantar incrédulos. Ao que parece, apenas o tempo se encarregaria de tirá-la lá do alto, e mesmo assim sem explicações e sentidos para tanta birra. Já começara a deixar de ser novidade, quando um rapaz de barba, e voz firme e doce, se postou diante da árvore e pediu: “Meu amor, desce. Vem pra cá, vem ficar comigo. Eu não vou mais brigar com você”. Sabe o que aconteceu? Nadica de nada. Nothing. Nem uma piscada sequer dela. “Meu amor, me desculpe. De coração, me desculpe”, insistiu ele. E...quem disse que ela se interessou, se mobilizou ou sequer ouviu as juras de amor? “Meu amor...”, e o barbudo tirou um chocolate do bolso, abriu a embalagem e mostrou para ela. A dálmata desceu a árvore feito esquilo e pá pá pum, comeu o chocolate inteirinho.

quarta-feira, 5 de março de 2014

PEQUENA CRÔNICA DE UMA PRAÇA (41)

Ela era branca feito neve. Mas preferia dizer que era branca feito vestido de noiva, porque não gostava de contos de fadas. Não demorou a associar a analogia ao seu sonho secreto. Sim, secretíssimo, porque a todos dizia que era desgarrada de convenções, e que casório era para os fracos. Mas o fato é que queria casar, papel passado, de véu, grinalda e chuva de arroz no final da cerimônia. Lia o jornal todos os dias, de cabo a rabo (principalmente rabo), mas não era desejo de se informar, ah nãoooo. Era pra ter assunto, fazer bonito em roda de bar, parecer inteligente e antenada. Seu sonho, esse sim, era o que a consumia de verdade, dia e noite (principalmente noite). E a vida seguia assim, não necessariamente nessa ordem: o sonho do altar, as letras sem sentido, a pose blasé... e passeios perdidos pela praça. Ia quase que diariamente à praça, porque não imaginava cena mais romântica do que um primeiro beijo, roubado, em banco público. Melhor ainda, ao movimento do balanço ou da gangorra, tanto faz. Ela parecia antenada e descolada, mas isso também era para os fracos. Ela era branca feito vestido de noiva, e, pensando bem, gostava mesmo era de um conto de fadas.

sábado, 29 de junho de 2013

PEQUENA CRÔNICA DE UMA PRAÇA (40)

A praça é do povo, e até os seus velhos bancos de concreto sabem disso. Mas naquele dia, especialmente naquele dia, as pessoas despertaram e resolveram, de fato, tomar posse do que é seu. Um mundo se aglomerou entre o parquinho, as mesas para jogos de carteados e a quadra imaginária dos meninos, e até no chafariz tinha felizes e molhados proprietários daquele espaço popular, daquele chão de todos. Era dia de manifestação, dia de mostrar a insatisfação geral e irrestrita da população, um sonoro “tou de saco cheio”.  E apareceu foi todo tipo de gente. E põe gente nisso: gente magra, gorda, alta e mais ou menos, gente ruiva, calva, cabeluda, vara pau e musculosa, gente com grana, sem dente, sem beira e nem eira, gente de vestido de domingo, de chinelos de dedo e de coturno militar, gente assim e gente assada, gente feliz e falando alto, gente corajosa e colorida, gente que pensa e sonhadora, gente como a gente. Estava todo mundo lá, se representando, porque pastor algum representa suas ovelhas, o que dirá as desgarradas... Pois foi esse o cenário que ela encontrou na primeira manifestação política de sua vida. Uma legítima festa da democracia. “Saí do Facebook”, estava escrito no cartaz que preparou, três dias antes, tamanha era sua ansiedade. Seus 16 anos lhe davam a certeza de estar cumprindo com o dever cívico; afinal, já tinha idade até para votar. Pintou faixas verdes e amarelas nas bochechas rosas, e não largou o smartphone com a filmadora ativada, como se tivesse baixado um Glauber Rocha da vida – ou melhor, como se tivesse feito um download espiritual de um cineasta em transe. Olhava tudo ao seu redor, e mais um pouquinho, maravilhada. Até que parou a câmara, os olhos, e até o coração, num guri de cabelos encaracolados, camiseta com o símbolo do movimento hippie, e um cartaz com os dizeres “Daqui não saio, daqui ninguém me tira”. Descobriu, naquele instante, que valia à pena ir para as ruas e, mais do que isso, que os livros de contos de fadas tinham mesmo razão: o amor à primeira vista existia. Depois, já em casa, ficou com vergonha de contar para os pais que passou a manifestação inteira desejando a propriedade privada alheia – no caso, os caracóis dos cabelos dele. Mas no bolso, tinha a prova do crime, de que vale mesmo à pena se manifestar: “Fabiano 2803-2013”.

quinta-feira, 30 de maio de 2013

PEQUENA CRÔNICA DE UMA PRAÇA (39)

Não dava para ouvir direito o diálogo entre elas duas, muito mais pela voz contida de uma delas, mas a conversa era mais ou menos assim:

- Quando eu fico doidaça, eu simplesmente passo a ser mais eu. E isso tem nome: li-ber-da-de – soletrou, com direito a hífens que andam tão em baixa na nossa língua.
- Eu conheço isso por outro nome: ir-res-pon-sa-bi-li-da-de. Também é bem conhecido como imaturidade, vadiagem, molecagem e p-o-r-r-a l-o-u-q-u-i-c-e – devolveu, com direito a muito mais hífens.

E a discussão não parou aí. Transformou-se no espetáculo do fim da tarde, para aqueles que insistiam em ficar na praça, embora estivesse esfriando e nuvens pretas anunciavam chuva para já. A libertária, claro, tinha gestos mais contundentes, teatrais, usava o corpo inteiro para se expressar, às vezes parecia uma cantora de ópera. A crítica era contida, e, mesmo nervosa, falava baixo, enquanto os olhos percorriam os cantos da praça, para ver se o mico era tão grande a ponto de mobilizar as pessoas que ali estavam. E mobilizou. Tanto que agora nem era preciso apertar os ouvidos e olhar disfarçado para a dupla – liberou geral, e a briga virou, mesmo, espetáculo de teatro de rua, mas sem direito a chapéu recolhendo grana no final.

- Você acha que eu estou preocupada? Tou nem aí para esse povo careta. Porque eu pago minhas contas, e não permitirei que você, nem ninguém, me julgue impunemente. Muito menos quem não me conhece, não sabe, como eu, o sabor do pão que o diabo amassou. E sem margarina, viu? – rebateu, acrescentando ao final uma risada histriônica.

- Quer saber? Isso é discurso, balela, retórica. Fuga dos fatos. Você simplesmente resolve esquecer da vida, pega carona em alguma viagem pessoal interplanetária, e esquece de seus compromissos. E não é um compromisso assim, sem importância. Você esqueceu de mim... – a voz, agora, era ainda mais baixa, e ela já não olhava mais para os lados. Chorava.

- Tenho meus amigos, meus compromissos, meus interesses. Sou uma mulher independente, tenho idade para isso. Você deveria saber disso, deveria estar acostumada já com isso – rebateu, em um tom menos agudo e mais conciliador.

E foi por aí que a briga enveredou, até virar conversa, terminando numa boa lavagem de roupa suja. A mãe, de saia indiana, colares multicoloridos, tranças enormes e braços tatuados, abraçou a filha e prometeu não mais “viajar” na frente dela que, por sua vez, jurou, de pés juntos, que qualquer hora tomaria coragem e experimentaria embarcar com ela para outros horizontes. Saíram da praça abraçadas, mãe e filha, calejadas pelo choque de gerações.

sábado, 18 de maio de 2013


PEQUENA CRÔNICA DE UMA PRAÇA (38)

Ela era a mais perfeita tradução de uma boneca Barbie. Alta e magra, pele clara e cabelos loiros bem longos e finos, mas de um loiro, assim, de gosto duvidoso. Algo com a naturalidade de um cabelo fabricado em laboratório e quase perfeito, já deu para entender? A roupa, eu particularmente nem saberia descrever... mas era grife dos pés à cabeça. Engraçada era a bolsinha ajeitada no ombro esquerdo, rosa pink, quase do tamanho de uma carteira, de tão pequena e, para mim, inútil. Mas ouvi dizer que tem bolsa que custa quatro dígitos, e aquela devia ser uma destas peças raras. Muita maquiagem e salto agulha tinindo de novo. Ele de blazer bem cortado, sapatos de couro, tudo muito combinado e elegante, sem falar nos cabelos grisalhos tratados quinzenalmente no salão. E as unhas? De tão perfeitas, nunca devem ter frequentado um fla-flu na vida. Um verdadeiro metrossexual de meia idade. Pois foi esse o casal que desceu daquele carro magnífico, importado, cujo IPVA e seguro pagam o aluguel anual de muita gente, mas que, como todo simples mortal (não acredito que escrevi isso), também quebra vez por outra. O carro enguiçou, e enquanto esperavam pelo socorro do seguro, decidiram sentar no banco da praça. Bem, ainda não inventaram praça com ar condicionado, e ali não era como o restaurante exclusivo para onde seguiam, lugar em que se come pouco e se fala menos ainda, mas perfeito para ser visto e comentado. Então, o que fazer para passar o tempo?  A carrocinha de cachorro-quente estava absolutamente fora do plano deles, me poupem... O angu, nem sabiam o que era – e provavelmente tinham raiva de quem sabe. Também não pega bem chupar picolé no palitinho, naqueles trajes, em uma praça pública. Só lhes restavam conversar, um com o outro. Não parecia uma tarefa tão simples, porque uma conversa precisa de um assunto que sustente mais de duas ou três intervenções de cada um. Mas não custava tentar.

- Quando eu era pequeno, vivia numa praça perto de casa. Chorava toda vez que era hora de ir embora – disse ele, quase que para si mesmo.

- Então isso te traz boas lembranças, não? – retrucou ela, tentando ser amável.

- Nem lembro direito... Comecei a trabalhar com 12 anos, a partir daí não tinha tempo para nada, depois cismei que deveria construir um império, e não sai daquele escritório enquanto meu sonho não se realizou. Na verdade, já sou um imperador, mas continuo preso no escritório. Nem sei como se brincava... – respondeu, lamentosamente.

- Nunca frequentei praças. Minha mãe não queria que eu me misturasse. Dizia que não ficava bem. Só deixava eu brincar com as crianças do prédio, no playground. E nem era com todas – ela abriu o coração.

O socorro chegara, o carrão agora estava okey, e a hora estava adiantada. Mas eles continuavam ali, na praça, noite adentro, comendo cachorro-quente, chupando picolé e dando risadas altas.


terça-feira, 14 de maio de 2013

PEQUENA CRÔNICA DE UMA PRAÇA (37)

Eu não saberia falar, assim, de bate pronto, qual era a cor do cabelo dela. Para mim, arriscaria numa profusão de dourados; não de um ouro de ostentação e luxúria, como muita gente quer e busca para si, mas uma gama de dourados de sonhos, do ouro de um troféu justo e suado, talvez no tom de um delicioso caramelo na boca de uma criança feliz. Outros poderiam rapidamente definir a cor de sua cabeleira sem pestanejar e, o que é muito pior, sem emoção alguma, como pode? Teriam, até, imagine você, aqueles que nem reparariam nela, mas esses poucos nem vale à pena citar, tamanha falta de respeito com o belo, ora bolas. Eu, não. Fiquei a navegar na tabela das cores das minhas emoções, perdido e sem fôlego. Os cabelos invadiam suas costas morenas, e balançavam, ora em movimentos de bossa-nova, ora no tom de uma orquestra sinfônica momentos antes dos aplausos. Ela sentou no banco da praça e eu a segui, em intenção e inteiro, embora sem me movimentar. Não conseguia tirar os olhos dela, e o mundo ali, me chamando à realidade e me oferecendo outros predicados: o jogo não começou porque ainda não me posicionara no gol do time sem camisa; o mate gelado não foi aberto, sequer comprado, para matar a sede da tarde; e a roda do papo não esquentou porque a roda nem se formou. O meu gol, minha sede e meu assunto estavam ali. E eu tentando entender o que não se deve, jamais, buscar compreensão. Afinal, faria sentido definir a cor de seu cabelo? Teria serventia desvendar um mistério que existia justamente para me perder (e prender) em buscas sempre intensas? Até hoje eu acompanho aqueles cabelos toda vez que ela passa pela praça, afinal toda paixão é sempre uma primeira vez.          

sexta-feira, 3 de maio de 2013

PEQUENA CRÔNICA DE UMA PRAÇA (36)

Cada um defende o herói que lhe convém. Um homem feito de ferro, ou biônico, que vale seis milhões de dólares, que use capa ou máscara e espada, talvez uma mulher maravilha ou um trio de panteras... o que importa, nessas horas, é combater o mal e, claro, vencê-lo. Se possível, como se fosse no último minuto do segundo tempo, com um gol de pênalti mal marcado, e sempre com o rosto e o corpo marcados, com muitos arranhões e algum sangue, para dar mais emoção. Os heróis citados na rodinha da praça eram praticamente os mesmos, incluindo, claro, alguns pais. Mas a turma se calou foi quando um dos meninos, um moleque franzino e baixinho, que sempre usava um boné virado para trás, revelou seu herói preferido: “Seu Geraldo”. Gargalhadas e vaias se misturaram, deixando-o constrangido e calado. Alguém se lembrou de questionar quem era esse herói, de nome tão comum e desconhecido, mas a gritaria era tamanha que ninguém ouviu a resposta: “é o porteiro do meu prédio”. Os meninos continuaram a zoá-lo, em um bullying orquestrado, até que - coincidência de herói? - Seu Geraldo apareceu para buscá-lo, à pedido da mãe do menino. O herói era tão magro quanto seu fã, lhe faltavam músculos e cabelos e, para falar a verdade, até mancava um pouco de uma perna. Isso sem falar que parecia um tanto - como dizer? - velho para ser da liga da justiça. Onde já se viu um herói de ralos cabelos brancos? O moleque o abraçou, saiu da rodinha de nariz em pé, altivo como alguém que tira nota dez em prova de trigonometria, e já um tanto afastado da turma, levantou o dedo médio e gritou: “Esse é o Seu Geraldoooooo. E ele não é pouca coisa nãooooo”.  Ainda ouvia o eco das risadas, quando se virou para o porteiro e, com uma voz ansiosa e ao mesmo tempo confiante, pediu: “Seu Geraldo, me conta de novo como o senhor conseguiu matar aquela ratazana enorme, que invadiu o prédio ontem pela manhã?”. E o herói pôs se a reproduzir a luta do bem contra o mal, cheio de detalhes e lances espetaculares, pela terceira ou quarta vez...